Páginas

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Epistemologia Platônica – Uma Reflexão


Platão é, até a atual era contemporânea, uma das mais proeminentes e referidas figuras filosóficas de todos os tempos. Sua teoria do conhecimento, traduzida em especial pela aclamada alegoria da caverna, fora tema não apenas de estudos acadêmicos, mas também de doutrinas religiosas, como até mesmo de produções fictícias e “hollywoodianas”.

Entretanto, ainda que o princípio básico da alegoria da caverna de Platão faça parte do conhecimento comum do público de nível de educação médio/superior em geral, muito se ignora acerca de suas reais implicações morais na vida prática do ser humano que, ao contrário de estar em uma caverna ou do lado de fora dela vendo a luz do sol, vive fora de uma alegoria mitológica criada no intuito de se fazer entender uma teoria do conhecimento.

Cabe, contudo, primeiramente, passar a uma breve análise da referida alegoria e qual o posicionamento do filósofo antigo no que tange à origem do conhecimento.

No mito da caverna, sugere Platão que se imagine um grupo de homens que, presos de tal maneira onde lhes fosse impossível mover seus corpos e pescoços, fitassem tão somente a parede do fundo de uma caverna. Do fundo da caverna em direção à saída da mesma, existe um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um muro, onde outros homens transportam toda espécie de coisas.

Ainda mais distante das profundezas da caverna existe um fogo, única fonte de iluminação para o interior da estrutura. Mesmo sendo uma fonte parca de luz, graças ao fogo que se projeta na parede ao fundo da caverna, podem os prisioneiros observar as sombras que se formam dos objetos e dos homens que passam por perto do muro.

Em tais condições, assume o filósofo que, nunca tendo visto nada além de vultos e sombras uns dos outros e daqueles que ao longe tinham suas silhuetas estampadas precariamente na parede da caverna, passariam os prisioneiros a crerem que aquilo que viam não eram simples sombras ou vestígios de algo, mas sim objetos reais, os quais designariam e tomariam como objetos circunscritos de realidade própria, independentes do que poderíamos chamar de “coisas reais”.

Com tal cenário proposto, o grego pensador então sugere que, caso ocorresse de se libertar um daqueles prisioneiros, e o forçasse a endireitar o corpo, membros e pescoço, olhar à sua volta e, então, finalmente, subir pelo caminho ascendente da caverna em direção à luz, aquele prisioneiro, durante todo o processo, sentiria extrema dor e mal estar, pois seu corpo e olhos não estariam acostumados a nada que não fosse sombras. Contudo, gradualmente, e, preferencialmente, com a ajuda de outros que viviam naquele mundo banhado pela luz solar, seus olhos tornar-se-iam capazes de observar a luz, e concluir que aquelas sombras que outrora nomeara como verdadeira realidade, nada mais seriam que fátuos reflexos do que, em realidade, existia no mundo exterior¹.

Aí se encontra parte importante da teoria do conhecimento platônico. Pois, segundo o grande filósofo, não poderia ser a educação um método de introduzir em uma alma algo que nela não existe, pois isto equivaleria a revelar a luz em todo seu esplendor a olhos cegos. Ao contrário, Platão refuta tal posicionamento, alegando que, da mesma forma que tanto o prisioneiro quanto aquele que vive no mundo exterior possuem olhos capazes de captar as mesmas imagens, mas que podem ver coisas diferentes dependendo do lugar onde estão e, ainda, de onde vieram anteriormente (se da luz para as trevas ou das trevas para a luz), todo ser humano possui uma faculdade de aprender na alma e um órgão pelo qual aprende.

Desta maneira, o ser humano teria em si já a imanência de um conhecimento, uma habilidade inata em relação ao que é captado pelos sentidos e pela razão (Platão chega mesmo a afirmar que a faculdade do pensar teria até mesmo um caráter divino superior a tudo mais). A educação, no intuito de se adquirir o verdadeiro e luminoso conhecimento, seria, de fato, a arte de ajudar o ser humano a manejar sua faculdade inata em consonância com aquilo que ela se utiliza para apreender, ou mesmo conhecer conscientemente tal fruto que se desejar aprender, da mesma forma em que, ao olhar para luz, vindo da sombra, deveria mover alma e olhos em um mesmo ritmo gradativo de contemplação da luz sob o risco de, movendo os olhos antes da alma, estes, despreparados, se cegassem e se doessem com o choque, ou então, “movendo-se” a alma em direção à luz enquanto os olhos permanecem fitando a escuridão, não conseguir compreender o conhecimento verdadeiro, visto que preso às amarras do mundo inferior.

Com tal concepção de educação proveniente do mito platônico, entende-se facilmente a posição ética abraçada pelo filósofo. Pois, em tendo um de nós, prisioneiros da caverna, sido libertados e dirigindo nossos corpos, com alma e olhos, rumo à luz e, após o choque momentâneo, conseguido entender o que de fato é cada coisa, como poderíamos, sabendo da condição de nossos irmãos de cárcere (que, tal qual a nós, possuem as mesmas capacidades para conhecer a verdade do mundo das “idéias verdadeiras”), deixá-los na escuridão eterna da ignorância?

Destarte, segundo a ética de Platão, a atitude moral esperada daquele que atingiu o conhecimento em níveis de maior luminescência é o de retornar às trevas e tentar, a duras penas, revelar aos seus antigos companheiros que estes estão a ver apenas ilusões e inverdades.

Platão, desta forma, critica veementemente aqueles que, atingindo a iluminação do sol (continuamos aqui a nos utilizar das figuras alegóricas do filósofo em análise), não intentam educar, nos moldes já expostos, aqueles que ainda se encontram nas trevas.

De fato, o que chega ao mundo exterior não é um escolhido ou um “iluminado” (aqui em um sentido de excepcional diante dos ordinários), honorável em meio aos “ignorantes” prisioneiros. Ele possui a mesma faculdade na alma, e órgão de aprendizados semelhantes aos de seus antigos companheiros. Isolar-se na Ilha dos Bem Aventurados por si só acabaria sendo tão somente isso, solidão.

É função daquele que conheceu a luz agir como um educador, ajudando aqueles que ainda tomam as sombras como realidade a saírem da caverna e adaptarem-se gradualmente suas vistas até poderem, como o educador, observarem a luz.

É neste ponto que Platão entende que os governantes de uma sociedade ideal para este mundo que, não obstante atingido por alguns raios de luz, ainda mais se parece com o fundo de uma profunda e tenebrosa caverna, seriam os filósofos, pessoas que, tendo o poder em mãos, não estariam enamoradas por ele, nem o utilizariam para seus próprios fins mesquinhos ligados às honrarias e louvores dos habitantes das sombras.

Isto porque seriam os filósofos aqueles que, se não vislumbraram por completo, ao menos puderam contemplar melhor a luz do mundo das idéias, e, desta forma, teriam como missão única, na posição de governantes, auxiliar a sociedade na verdadeira escalada coesa pelo íngreme caminho rumo à saída da caverna para que todos pudessem, finalmente, viver sem seus grilhões, banhados pelo sol da verdade.

R.
Bruner de Morais Miranda

¹A título de curiosidade, compare-se tal passagem com um ditado zen-budista, cuja fonte nos falta no momento: “Antes de estudar o Zen, montanhas são montanhas e água é água. Depois de vislumbrar a Verdade, montanhas não mais parecem montanhas e água não é água. Mais tarde, quando se atinge de verdade a iluminação, as montanhas outra vez são montanhas, e água é água.” – Em uma breve análise, é notável e curiosa a semelhança de tal enunciado com a teoria do conhecimento de Platão. Em um primeiro momento, tem-se que tudo é de tal forma como se vê em sombras. Em um segundo momento, ao se contemplar a verdade, os olhos doem diante da luz, e tudo fica distorcido. Porém, ao final, quando os olhos se acostumam à luz, pode-se ver em realidade e em verdade aquilo que era a origem das sombras que antes se julgavam ser a essência por si só. Seria tal semelhança nos enunciados uma comprovação da teoria do Mundo das Idéias, que estão à disposição de todos os seres humanos que possuem a faculdade inata do pensar, podendo atingir o mundo ideal como uma reminiscência de algo intrínseco à própria alma humana?



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

. PLATÃO, A República – Tradução e Notas de Maria Helena da Rocha Pereira, 8ª Ed., Ed. Fundação Calouste Gulbekian.

. CAMPBELL, Joseph, O Herói de Mil Faces - 10ª Ed., Ed. Cultrix/Pensamento, São Paulo, 1997.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Faça-se a Luz!

'E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas.'¹

Depois de separar as águas de baixo e de cima, revelando o firmamento, depois de separar terra e mar, dar surgimento a toda espécie de plantas, animais, objetos cósmicos e, pasmem, o ser humano, 'Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom'².

O mito judaico da criação do mundo sempre me atiçou a curiosidade. Todavia, nas últimas semanas, algo, tal como em uma estranha epifania, vem intrigando minha mente e prendendo minha atenção.

Sejamos cristãos ou judeus, ou mesmo de outras religiões que concebem um conceito de deus único, em especial as ocidentais, sempre somos levados a pensar que este deus seja a última representação de onipotência, onisciência e onipresença. Um símbolo, exemplo ou existência perfeita, capaz de realizar feitos tão magnânimos quanto a própria criação de um universo, a partir de seu verbo.

Mas o que realmente me intriga é que, sendo uma presença perfeita, é de se concluir que suas ações e criações seriam tão perfeitos quanto seu criador ou, ao menos, com uma potência de se chegar a tal perfeição.

Talvez a idéia de que tenhamos sido feitos à imagem de Deus, ou seja, réplicas de um ser perfeito, seja a razão pela qual somos atingidos por tamanha frustração e, por que não dizer, por tamanha intolerância em relação a nossas falhas e às falhas das demais pessoas, em especial aquelas que temos em maior prestígio. Inconscientemente, ou não, imaginamos que é possível sermos perfeitos e que devemos assim o ser, pois fomos feitos para isso.

Entretanto, o gênesis bíblico continua, contando-nos que, ao término de seu labor, Deus fitou sua criação e, em contemplação, viu que tudo era muito bom.

Ei! Párem as máquinas! Que história é essa de "muito bom"? Vai me dizer agora que um ser absoluto e todo poderoso, empenhando-se por seis dias divinos, dedicando-se tanto ao ponto de ter de descansar ao sétimo dia, conseguiu apenas realizar uma obra muito boa?

Isso para não dizer que, durante os dias anteriores, após a fadiga do labor da criação, o Criador, ao terminar sua arquitetura, a julgava simplesmente "boa".

"Boa"? Mas... Como pode ser? Como um Deus perfeito pode criar, ou melhor, se contentar com algo tão frágil quanto o simplesmente "muito bom"?

E, se fomos feitos à sua imagem e semelhança, como Ele pode nos julgar "muito bons"? Nós somos perfeitos, não somos? Ou deveríamos ser... Mas não! Desde o início, antes mesmo do chamado "Pecado Original" jamais vivenciamos a perfeição...

Como outrora relatei, tais passagens andam me tirando o sono. Não conseguia cogitar, logicamente, as várias implicações que o "muito bom" original trazia à minha, à sua, à nossa existência.

Entretanto, foi quando o "clic" ocorreu, tão onomatopeicamente quanto poderia dentro de minha mente. E se o paradigma estivesse errado desde o início?

Neste caso, o deus do Genêsis bíblico jamais criara o mundo para ser perfeito, jamais esperara de nós que fossêmos infalíveis, inabaláveis e insuscetíveis aos sentimentos e ações erradas ou não virtuosas.

Se nem mesmo o ser considerado a origem do universo esperava que fôssemos criaturas perfeitas, não devemos nós, seres que somos, quando muito, "muito bons", esperarmos esta perfeição e infalibilidade de nós mesmos e das outras pessoas. Cobrar esta perfeição é cobrar algo para o qual jamais fomos elaborados. A imperfeição existe e é parte de nossa humanidade, e ela existe para que aprendamos a exercer, talvez, o sentimento mais elevado do qual se tem notícia: o Amor. Isto porque, apenas por este sentimento, somos capazes de viver em harmonia em meio a seres tão limitados quanto a nós mesmos.

Tavez o amor seja grande na mesma medida de nossas imperfeições, nos fazendo enxergar estas últimas sem julgamento ou intolerância, e achando tudo, na verdade, "muito bom".

Mas se é assim... Quer dizer que o Deus do qual fomos criados à imagem, também não seria perfeito? Será por esta razão que, nos dias atuais, tantas religiões passaram a pregar uma nova mensagem do Amor?

Será talvez porque mesmo Deus precisa ser amado, e porque Ele também pode errar, se ferir, esofrer, tal quando a mão de Afrodite ferida foi por Diomedes, ou o quadril do Deus dos hebreus fora deslocado enquanto lutava com Jacó, ou o próprio corpo do Cristo que, considerado o grande artífice do Amor, fora torturado e crucificado, seu lado aberto e seu coração atravessado?

Bem, infelizmente, não tenho as respostas a estas perguntas. Mas as possibilidades que elas disponibilizam sem dúvidas tiram um grande peso de meu peito, abrindo portas e janelas para uma vida mais feliz, pacífica, com menos cobrança e mais aceitação.

Bendita seja nossa imperfeição humana pois, desde o início, ela fora a chave da manifestação de nosso amor. Um Amor divinamente humano e humanamente divino.

E obrigado a você que lê essas linhas.

R.



¹Gênesis, 1, v. 3-4.
² Gênesis, 1, v. 31.