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terça-feira, 29 de junho de 2010

Faça-se a Luz!

'E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas.'¹

Depois de separar as águas de baixo e de cima, revelando o firmamento, depois de separar terra e mar, dar surgimento a toda espécie de plantas, animais, objetos cósmicos e, pasmem, o ser humano, 'Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom'².

O mito judaico da criação do mundo sempre me atiçou a curiosidade. Todavia, nas últimas semanas, algo, tal como em uma estranha epifania, vem intrigando minha mente e prendendo minha atenção.

Sejamos cristãos ou judeus, ou mesmo de outras religiões que concebem um conceito de deus único, em especial as ocidentais, sempre somos levados a pensar que este deus seja a última representação de onipotência, onisciência e onipresença. Um símbolo, exemplo ou existência perfeita, capaz de realizar feitos tão magnânimos quanto a própria criação de um universo, a partir de seu verbo.

Mas o que realmente me intriga é que, sendo uma presença perfeita, é de se concluir que suas ações e criações seriam tão perfeitos quanto seu criador ou, ao menos, com uma potência de se chegar a tal perfeição.

Talvez a idéia de que tenhamos sido feitos à imagem de Deus, ou seja, réplicas de um ser perfeito, seja a razão pela qual somos atingidos por tamanha frustração e, por que não dizer, por tamanha intolerância em relação a nossas falhas e às falhas das demais pessoas, em especial aquelas que temos em maior prestígio. Inconscientemente, ou não, imaginamos que é possível sermos perfeitos e que devemos assim o ser, pois fomos feitos para isso.

Entretanto, o gênesis bíblico continua, contando-nos que, ao término de seu labor, Deus fitou sua criação e, em contemplação, viu que tudo era muito bom.

Ei! Párem as máquinas! Que história é essa de "muito bom"? Vai me dizer agora que um ser absoluto e todo poderoso, empenhando-se por seis dias divinos, dedicando-se tanto ao ponto de ter de descansar ao sétimo dia, conseguiu apenas realizar uma obra muito boa?

Isso para não dizer que, durante os dias anteriores, após a fadiga do labor da criação, o Criador, ao terminar sua arquitetura, a julgava simplesmente "boa".

"Boa"? Mas... Como pode ser? Como um Deus perfeito pode criar, ou melhor, se contentar com algo tão frágil quanto o simplesmente "muito bom"?

E, se fomos feitos à sua imagem e semelhança, como Ele pode nos julgar "muito bons"? Nós somos perfeitos, não somos? Ou deveríamos ser... Mas não! Desde o início, antes mesmo do chamado "Pecado Original" jamais vivenciamos a perfeição...

Como outrora relatei, tais passagens andam me tirando o sono. Não conseguia cogitar, logicamente, as várias implicações que o "muito bom" original trazia à minha, à sua, à nossa existência.

Entretanto, foi quando o "clic" ocorreu, tão onomatopeicamente quanto poderia dentro de minha mente. E se o paradigma estivesse errado desde o início?

Neste caso, o deus do Genêsis bíblico jamais criara o mundo para ser perfeito, jamais esperara de nós que fossêmos infalíveis, inabaláveis e insuscetíveis aos sentimentos e ações erradas ou não virtuosas.

Se nem mesmo o ser considerado a origem do universo esperava que fôssemos criaturas perfeitas, não devemos nós, seres que somos, quando muito, "muito bons", esperarmos esta perfeição e infalibilidade de nós mesmos e das outras pessoas. Cobrar esta perfeição é cobrar algo para o qual jamais fomos elaborados. A imperfeição existe e é parte de nossa humanidade, e ela existe para que aprendamos a exercer, talvez, o sentimento mais elevado do qual se tem notícia: o Amor. Isto porque, apenas por este sentimento, somos capazes de viver em harmonia em meio a seres tão limitados quanto a nós mesmos.

Tavez o amor seja grande na mesma medida de nossas imperfeições, nos fazendo enxergar estas últimas sem julgamento ou intolerância, e achando tudo, na verdade, "muito bom".

Mas se é assim... Quer dizer que o Deus do qual fomos criados à imagem, também não seria perfeito? Será por esta razão que, nos dias atuais, tantas religiões passaram a pregar uma nova mensagem do Amor?

Será talvez porque mesmo Deus precisa ser amado, e porque Ele também pode errar, se ferir, esofrer, tal quando a mão de Afrodite ferida foi por Diomedes, ou o quadril do Deus dos hebreus fora deslocado enquanto lutava com Jacó, ou o próprio corpo do Cristo que, considerado o grande artífice do Amor, fora torturado e crucificado, seu lado aberto e seu coração atravessado?

Bem, infelizmente, não tenho as respostas a estas perguntas. Mas as possibilidades que elas disponibilizam sem dúvidas tiram um grande peso de meu peito, abrindo portas e janelas para uma vida mais feliz, pacífica, com menos cobrança e mais aceitação.

Bendita seja nossa imperfeição humana pois, desde o início, ela fora a chave da manifestação de nosso amor. Um Amor divinamente humano e humanamente divino.

E obrigado a você que lê essas linhas.

R.



¹Gênesis, 1, v. 3-4.
² Gênesis, 1, v. 31.

Um comentário:

  1. "menos cobrança e mais aceitação", essa é a pedra fundamental para o caminho de mais felicidade e menos dor. Vamos tentando também "Um Amor divinamente humano e humanamente divino." com a manifestação mais ampla que o amor pode ter. Boa noite!

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